quinta-feira, 27 de agosto de 2009



Os opostos: Rita Baiana e Bertoleza na obra O Cortiço

Várias análises já foram realizadas sobre o romance "O Cortiço", de Aluízio Azevedo, descrevendo sua importância na literatura brasileira.
A ideia desse ensaio é tratar da antítese entre duas personagens femininas: Rita Baiana e Bertoleza. Para isso recorremos à história literária com o objetivo de entender o momento histórico europeu e brasileiro e as influências dos movimentos e descobertas que permemiam o final do século XIX.
Em 1867 Émile Zola publica o livro "Thérèse Raquin", para espanto da sociedade francesa tendo sofrido duras críticas da comunidade literária, que seguiu a mesma linha de análise de autores como Gustave Flaubert e Charles Baudelaire. O amor do casal protagonista dessa obra, foi entendido como pornográfico, atentando contra os bons costumes de uma sociedade hipócrita que recolhia sua podridão por debaixo das avenidas parisienses. esse romance marca o início do Naturalismo. Émile Zola retratava a sociedade com uma visão realista, entendendo que a imaginação já não era a qualidade mestra do romancista. Para ele Balzac e Stendhal foram grandes porque retrataram sua época, e não porque inventaram contos. Em sua visão o romance naturalista tinha que fazer mover personagens reais num meio real, dando ao leitor um fragmento da vida humana, conforme descrito em seu livro "Do Romance":

"Visto que a imaginação, já não é a qualidade mestra do romancista, o que, então, a substituiu? É preciso sempre uma qualidade mestra. Hoje, a qualidade mestra do romancista é o senso do real (ZOLA, 1995: 28)."
O momento europeu estava em erupção convivendo com teorias como o Positivismo, de Auguste Comte, para o qual o único conhecimento válido é o conhecimento positivo, ou seja, provindo das ciências, como a Lei da Seleção Natural, de Charles Darwin, segundo a qual a natureza ou o meio selecionam entre os seres vivos as variações que estão destinadas a sobreviver e a perpetuar-se sendo eliminados os mais fracos, e, como o Determinismo. de Hippolyte Taine, defendendo que o comportamento humano seria determinado por três fatores: o meio, a raça e o momento.
Antonio Candido, em sua obra "O Discurso e a Cidade" reforça a ideia dessa ultima vertente que influencia a composição do romance "O Cortiço":
"A perspectiva naturalista ajuda a compreender o mecanismo d"O Cortiço, porque o mecanismo do cortiço descrito é regido por um determinismo restrito, que mostra a natureza (meio) condicionando o grupo (raça) e ambos definindo as relações humanas na habitação coletiva (CANDIDO, 2004)."
O Realismo brasileira tem início em 1881, com a publicação de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", romance realista de Machado de Assis e com a publicação de "O Mulato", romance naturalista de Aluízio Azevedo.
A partir da segunda metade do século XIX, a sociedade brasileira sogreu grandes transformações. Da sociedade agrária, latifundiária, escravocrata e aristocrática passou a ser uma civilização burguesa e urbana. A mão-de-obra escrava aos poucos foi substituída pelos imigrantes europeus assalariados que vinham trabalhar na lavoura cafeeira.
A década de 80 correspondeu ao período de intensificação da campanha abolicionista que culminou com a Lei Áurea de 1888; ao período da Guerra do Paraguai e ao período da decadência da monarquia e estabelecimento da república.
Foi em plena época realista que ocorreu a Fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, e um processo que pode ser chamado de oficialização da literatura. O escritor que antes era meio discriminado, marginalizado, começou a ter prestígio e a participar mais ativamente da vida social.
Aluísio Azevedo foi o grande representante do naturalismo brasileiro. Para o autor o homem era fruto dos elementos biológicos (raça) e das circunstâncias do tempo e do meio em que vivia. Aluísio Azevedo era um escritor profissional, escrevendo de acordo com o gosto do público leitor da época. Sua obra era bem diversificada, apresentando romances românticos e romances naturalistas. Mas ao contrário de outros escritores que apresentavam fases, Aluísio Azevedo produzia os dois tipos de romance simultaneamente.
Em 1890 é publicado "O Cortiço" que retrava a realidade dos agrupamentos humanos em habitações coletivas muito comuns no final do século XIX. O romance fala das misérias, dos vícios e da promiscuidade das pessoas que habitavam o cortiço. O cortiço é o núcleo gerador de todas as ações do romance.
Anteriormente Émile Zola, em 1885 publica a obra 'Germinal" que elevou a estética e a descrição naturalista a um novo patamar de realismo e crueza. O romance é minuciosos ao descrever as condições de vida sub-humanas de uma comunidade de trabalhadores de uma mina de carvão na França. Após ter contato com ideias socialistas que circulavam pela classe operária européia, os mineradores retratados na obra, revoltam-se contra a opressão e organizam uma greve geral, exigindo condições de vida e trabalho mais favoráveis. A manifestação é reprimida e neutralizada, entretanto permanece viva a esperança de luta e conquista.
Aluízio Azevedo sofre influências dessa obra na composição de "O Cortiço", porém aprofunda as temáticas como a degradação do ser humano, a promiscuidade sendo mais ousado que Zola.
Dentro desse clima de promiscuidade agravado pelo alcoolismo, sexo e violência, se desenha o enredo da obra de Aluísio. O cortiço, como personagem central do romance, vai absorvendo e tecendo suas teias e consumindo o cotidiano de seus moradores, influenciando em suas ações, delineando suas personalidades, determinando suas atitudes reativas as mazelas impostas pela vida.
É nesse convívio com o meio que duas personagens femininas se sobressaem em dois pólos antagônicos. Rita Baiana, com o modelo de liberdade, dominadora, influenciando os homens que a rodeiam para conseguir seus objetivos, e, Bertoleza, escrava, iludida que foi alforriada, submetendo-se aos caprichos e exploração da personagem masculina de João Romão.
As relações entre homens e mulheres, ao longo dos séculos, mantém caráter excludente, no Naturalismo a mulher deixa de ser idealizada como no Romantismo e passa a ser representada de forma exagerada, e trabalha psicologicamente, pois essas são marcas do Naturalismo, até de forma patológica ela é representada, além de animalesca.
Rita Baiana levava um estilo de vida diferente das demais mulheres do cortiço. A mulata era independente e procurava viver cada dia da vida conforme ela se apresentasse. Suas ações despertavam um turbilhão de sentimentos entre as demais moradoras do cortiço. A sua falta de responsabilidade, sua sensualidade, talvez fosse como uma imagem refletida no espelho, causando inveja pela falta de coragem das outras mulheres em assumir seus temores, anseios e desejos mais profundos, enterrados em uma hipocrisia, firmados em valores familiares já então consumidos pela influência do meio.
Na passagem abaixo do romance, as lavadeiras definem como interpretam as ações de Rita Baiana diante dos acasos da vida:
"Uma conversa cerrada travara-se no resto da fila de lavadeiras a respeito da Rita Baiana.
- É doida mesmo!... censura Augusta. Meter-se na pândega sem dar conta da roupa que lhe entregaram... Assim há de ficar sem um freguês...
- Aquela não endireita mais!... Cada vez fica até mais assanhada!... Parece que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode, vai tudo pro lado! Olha o que saiu o ano passado com a festa da Penha!...
- Então agora, com este mulato, o Firmo, é uma pouca-vergonha! Est'ro dia, pois você não viu? Levaram aí numa bebedeira, a dançar e cantar à viola, que nem sei o que parecei! Deus te livre!
- Para tudo há horas e há dias!...
- Para a Rita todos os dias são dias santos! A questão é aparecer quem puxe por ela! (O Cortiço, pg. 36)
As relações amorosas dessa personagem iram nortear seu percurso durante a obra, acabando em certos momentos, tornando-se protagonista das ações de violência, vingança, desejo carnal, falecimento da instituição familiar dos moldes europeus e ruptura do homem exercendo a ação determinante sobre o meio para por ele (meio) ser absorvido e subjugado aos seus caprichos.
A irreverência. atrevimento e visão de mundo em relação a relacionamentos com homens sempre se demonstraram como pontos altos em sua trajetória na obra. Sua definição da Instituição do casamento, fica bem evidenciada no trecho abaixo:
" - Casar? Protestou a Rita. Nessa não cai a filha do meu pai! Casar? livra! Para quê? Para arranjar cativeiro? um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! qual" Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu! (O Cortiço, pg. 50)
Assim como Eva, personagem bíblica, e, Helena de Tróia, personagem da mitologia grega, Rita Baiana torna-se o foco da discórdia entre o sexo masculino.
A desobediência de Eva ao comer o fruto da árvores proibida, seja ela por ter sido enganada pela serpente e também pela curiosidade da raça humana em relação ao desconhecido, aparece em alguns traços da personalidade da personagem no romance.
A personagem Jerônimo, português, com valores calcados no trabalho e na família, acaba entregando-se aos desejos carnais por Rita e termina sendo engolido pelo meio, reforçando a ideia apresentada pelo Determinismo de Taine e reforçada por Antonio Candido quando apresenta três alternativas de Toynbee: "português que chega e vence o meio; português que chega e é vencido pelo meio; brasileiro explorado e adaptado ao meio".
Jerônimo se enquadra na alternativa do português que é vencido pelo meio. Uma vez que trabalha e mora no cortiço, deixa-se levar pelos encantamentos da mulata, divorciando-se de seus ideais de ascensão econômica e social e valores éticos de justiça e familiares.
Segundo os poemas épicos de Homero, a "Ilíada" e a "Odisséia", os gregos atacaram Tróia para recuperar Helena, esposa de Menelau, raptada por Paris. No romance "O Cortiço" é possível fazer algumas analogias.
Jerônimo, seduzido pelos encantamentos de Rira, durante uma roda de pagode, é desafiado por Firmo, amante da personagem, no que resulta em um ferimento quase fatal. Mais tarde, quando recuperado, Jerônimo planeja vingança contra Firmo e acaba tirando a vida dessa personagem:
"Soltaram-no então. O capoeira, mal tocou os pés em terra, desferiu um golpe com a cabeça, ao mesmo tempo que a primeira cacetada lhe abria a nuca. Deu um grito e voltou-se cambaleando. Uma nova paulada cantou-lhe nos ombros, e outra em seguida nos rins, e outra nas coxas, outra mais violenta quebrou=lhe a clavícula, enquanto outra logo lhe rachava a testa e outra lhe apanhava a espinha, e outras, cada vez mais rápidas batiam de novo nos pontos já espancados, até que se converteram numa carga contínua de porretadas, a que o infeliz não resistiu, rolando no chão, a gotejar sangue de todo o corpo. (O Cortiço, pg. 130)
A morte de Firmo acabou gerando revolta entre os moradores do cortiço vizinho, "Cabeça de Gato", que se organizaram para atacar e vingar a morte do companheiro. A guerra somente não ocorreu devido a tentativa de incêndio no cortiço, causada pela personagem chamada Bruxa. Rita Baiana foi o pivô dessa trama assim como Helena na guerra de Tróia. O motivo: o mesmo. A disputa de dois homens pelo amor de uma mulher.
Bertoleza já inicia a obra sendo enganada por João Romão, iludindo-se de sua alforia. Na contramão de Rita Baiana, essa personagem entrega-se em corpo e alma ao personagem masculino.
Os condicionantes sociais e psicológicos de bertoleza, fazia dessa mulher, mesmo que acreditando que sua liberdade havia sido comprada, que ainda dependesse e necessitasse da figura de um dono, de um controlador.
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caiixeiro, criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. (O Cortiço, pg. 15).
Através deste trecho podemos perceber a condição de escrava que ela vivia, e é importante ressaltar ainda que, o contexto social da época, século XIX, marcado pelo advento da sociedade burguesa, advento da ciência no mundo, além das teorias deterministas da época, influenciaram muito na representação que Bertoleza traz. Dessa forma, tratando da influência da classe em ascensão, que tinha como ideais a acumulação de bens, a burguesia visava antes de tudo o controle social e o crescimento econômico.
Sua admiração, despojamento de bens materiais e pessoais em prol da presença masculina, diante aos caprichos e pretensões de riqueza de seu dono, faz com que a personagem navegue em um mar de inanição. Ataulfo Alves e Mário Lago, autores em 1941, do samba "Ai que saudades da Amélia", versavam em suas palavras algo que se assemelha a personalidade dessa personagem"
"... as vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer...
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia que era mulher de verdade."
A animalização no seu percurso de vida faz-se presente em toda a obra. Come apenas para sobreviver, doa o corpo apenas para saciar seus prazeres carnais e de seu parceiro, trabalha como um "burro de carga" sem recompensas e aspirações na melhoria de sua qualidade de vida.
Sua obediência acobertava de tal forma sua condição enquanto ser humano, que mesmo na situação de escravidão acreditava que vivia em liberdade.
Essa situação fica evidente no final do romance quando João Romão trama para devolvê-la aos seus donos, preferindo a morte:
"A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.
Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.
E depois emborcou para frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue. (O Cortiço, pg. 175)
Finalizando esse ensaio, cabe ressaltar que as personagens femininas na obra "O Cortiço" exercem papeis mais importantes do que as personagens masculinas. São através delas que as ações do meio interagem no cotidiano da sociedade compreendida naquela localidade.
Em nosso mundo contemporâneo certamente nos deparamos com diversas Ritas Baianas e Bertolezas. As questões relativas aos opostos est~~ao sempre presentes em nossa sociedade, demarcando territórios e trazendo-nos reflexões inconscientes e conscientes das relações e condições humanas.
Escrito e desenvolvido por Paulo Christofoli
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Aluízio. O Cortiço. São Paulo: Klick, 1997.
CANDIDO, Antonio. O Discurso e a Cidade. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2004.
WIKIPÉDIA. O Naturalismo no Brasil. Disponível em: http://www.http//pt.wikipedia.org/wiki/Naturalismo Acesso em: 26 novembro 2008.
WIKIPÉDIA. Determinismo. Disponível em: http://www.http//wikipedia.org/wiki/Determinismo Acesso em: 26 novembro 2008.
WIKIPÉDIA. Positivismo. Disponível em: http://www.http//pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo Acesso em: 26 novembro 2008.
WIKIPÉDIA. Hippolyte Taine. Disponível em: http://www.http//pt.wikipedia.org/wiki/HippolyteTaine Acesso em: 26 novembro 2008.
WIKIPÉDIA. Auguste Comte. Disponível em: http://www.http//pt.wikipedia.org/wiki/AugusteComte Acesso em: 26 novembro 2008.
WIKIPÉDIA. Aluízio Azevedo. Disponível em: www.http://pt.wikipedia.org/wiki/Alu%C3%AluísioAzevedo Acesso em: 26 novembro 2008.
ZOLA, Émile. Do Romance. São Paulo: Editora Imaginário: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.